Pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da USP e de duas universidades da Inglaterra descobriram o mecanismo envolvido na replicação e reparo de DNA que pode auxiliar médicos a tratar e combater diferentes tipos de tumores. Os experimentos, realizados em laboratório, foram capazes de comprovar, pela primeira vez, uma teoria há tempos estabelecida entre os estudiosos da bioquímica molecular. Novos estudos ainda são necessários, mas os cientistas envolvidos acreditam que a descoberta poderá ser utilizada, no futuro, em pesquisas clínicas com novos quimioterápicos para o tratamento de diferentes tipos de câncer e outras doenças.
O DNA é o material genético que guarda a informação da vida. Como uma “receita de bolo”, ele contém as instruções para que as células se multipliquem e produzam os componentes necessários para a sua manutenção — e para o bom funcionamento do organismo como um todo. Por se tratar de uma molécula química, o DNA pode interagir e reagir com diferentes compostos ao longo da vida de uma pessoa — sejam eles internos ou externos, como a radiação, a luz ultravioleta, componentes do cigarro etc. Esses agentes danificam o DNA e podem resultar em mudanças na sequência de informação armazenada ali.
As células fazem o possível para manter a sua qualidade e integridade, através de diferentes mecanismos de reparo. Assim, sempre que ocorrem danos ao material genético, a célula tenta consertá-los de maneira fiel. Se os danos forem excessivos, ela morre, para evitar que essa informação incorreta seja transmitida às células-filhas em um processo chamado de replicação — ou seja, a multiplicação do DNA para formação de novas células. Quando o reparo fiel ou a morte não ocorrem, há o desenvolvimento de doenças como o câncer.
Segundo o professor Nícolas Carlos Hoch, do Instituto de Química da USP e um dos autores do artigo, sempre que uma célula vai se dividir para gerar uma nova, ela precisa duplicar todo o seu DNA. Nesse processo, a maquinaria de replicação abre a dupla-fita de DNA e começa a copiar, separadamente, cada uma das fitas. Isto resulta em quatro fitas ao final — ou duas duplas-fitas, uma para cada célula-filha. Ao local exato da molécula de DNA onde a cópia está acontecendo, dá-se o nome de “forquilha de replicação”.
Hoch é professor do Departamento de Bioquímica e coordena o Laboratório de Estabilidade Genômica. Seu grupo de pesquisa estuda vias de sinalização/reparo de danos ao DNA e tem interesse em doenças genéticas humanas, causadas por mutações nestes processos.
Copiando a receita de bolo em duas vias
Imagine as fitas de DNA como duas folhas de papel, nas quais está escrita uma receita de bolo em duas vias. Em uma página, a receita está redigida normalmente; na outra, há uma cópia espelhada do texto. As duas páginas são necessárias, porque se você perder ou manchar uma delas, consegue ainda obter a receita correta usando a outra página. Se você fosse copiar a receita à mão para alguém, você escreveria uma folha de cada vez, separadamente. Até que o processo esteja concluído, haverá alguns trechos já copiados da receita e outros ainda por copiar. É exatamente assim que funciona a replicação de DNA — e a ponta da sua caneta representa o local da forquilha de replicação.
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Já era conhecido que os danos ao DNA poderiam ocorrer antes e/ou após a forquilha de replicação — afinal, em uma situação natural, as modificações moleculares são aleatórias. Porém, nenhum pesquisador havia conseguido separar os dois processos, a fim de compreender qual deles é mais comprometedor para a viabilidade celular — ou seja, qual local de dano interrompe a replicação ou leva a célula à morte.
Neste contexto, Nícolas Hoch e seus colaboradores propuseram dois experimentos: no primeiro, foi adicionado a uma cultura de células em replicação um composto chamado de clorodeoxiuridina (CldU) — um análogo de nucleotídeo modificado, que é incorporado somente à fita recém-sintetizada de DNA. No exemplo anterior, é como se você usasse uma caneta de cor diferente para escrever as letrinhas da nova receita no papel. O CldU é reconhecido pela célula como um dano molecular, o que ativa os mecanismos de reparo de DNA. Para identificar quais os efeitos desse dano imediatamente após a replicação, os pesquisadores trataram as células simultaneamente com um outro composto, chamado inibidor de PARP — cuja função é impedir a via de reparo de DNA que corrige o dano específico provocado pelo CldU. Nesta situação, observou-se que as células não morreram e conseguiram se multiplicar sem grandes problemas.
No segundo experimento, os pesquisadores utilizaram como base a mesma condição anterior — em que as células passaram por uma fase de replicação na presença de CldU e, portanto, o dano já está inserido no DNA. Quando as células começaram uma nova rodada de replicação, foi adicionado à cultura o inibidor de PARP, a fim de impedir o reparo do DNA danificado nas fitas-molde — ou seja, o material genético usado como base para a cópia, à frente da forquilha de replicação. Na analogia anterior, seria como utilizar a receita feita com cor diferente para produzir um novo transcrito. Ao final do ensaio, observou-se que a presença dos danos não reparados provocou o colapso da forquilha, a interrupção da replicação e até mesmo a morte celular.
Com os resultados dos experimentos, pode-se chegar a duas conclusões principais: primeiro, de que os danos ao DNA molde, à frente da forquilha de replicação, são os que realmente comprometem a integridade e a viabilidade celular. Segundo, de que se o inibidor de PARP — um quimioterápico já adotado na clínica para tratar alguns tipos de câncer — for utilizado em combinação com o CldU, ele pode ter o seu efeito potencializado contra os tumores. Mais pesquisas, no entanto, são necessárias para comprovar esta hipótese.
Os dados estão no artigo Unrepaired base excision repair intermediates in template DNA strands trigger replication fork collapse and PARP inhibitor sensitivity, publicado na revista científica The EMBO Journal.
Mais informações: e-mail nicolas@iq.usp.br, com o professor Nícolas Carlos Hoch
*Da Assessoria de Comunicação do Instituto de Química, editado por Valéria Dias
**Estagiária supervisionada por Moisés Dorado