Mais de 20 anos de pesquisas desenvolvidas no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), no interior paulista, resultaram em um novo protocolo terapêutico para um tipo específico de câncer de pele e em um equipamento inovador. Ambos poderão ser empregados tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento da lesão tumoral. A inovação está prestes a chegar à população brasileira por recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no Sistema Único de Saúde (SUS). A Conitec é um órgão assessor do Ministério da Saúde para assuntos relativos à adoção, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS.
Em julho deste ano, após concluir o processo de avaliação das evidências científicas de segurança e eficácia, além de estudos de viabilidade econômica, a Conitec recomendou a incorporação ao SUS da terapia fotodinâmica (TFD) para carcinoma basocelular, um dos tipos de câncer de pele mais comuns no país.
O novo tratamento consiste na destruição do tumor por meio de irradiação intensa com luz em um comprimento de onda que ativa um agente fotossensível, produzido pelas células tumorais após aplicação local de um creme. Uma vez ativado, esse agente produz radicais livres que destroem as células que o contêm. Antes da irradiação, o próprio agente fotossensível permite identificar a região tumoral, pois uma vez iluminado com luz azul, o agente fluoresce em cor vermelha
A recomendação da Conitec foi publicada no Diário Oficial da União em 5 de setembro. A partir dessa data, o Ministério da Saúde tem 180 dias para efetivar a oferta no SUS. “A incorporação dessa tecnologia é um incentivo para que as universidades continuem investindo em atividade de pesquisa, o que é fundamental para fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde”, afirma a farmacêutica Daniela Oliveira de Melo, coordenadora do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e professora do curso de farmácia da instituição. A docente colaborou com o Ministério da Saúde na análise da demanda.
O responsável pelo projeto, o físico Vanderlei Bagnato, conta que começou a trabalhar com terapia fotodinâmica por volta de 1997. Na época, ao participar de um congresso nos Estados Unidos, tomou conhecimento do uso da TFD no tratamento de câncer. “Fiquei fascinado e iniciei a aplicação clínica, a partir dos estudos laboratoriais realizados no exterior, em parceria com o Hospital Amaral Carvalho, de Jaú [SP]”, diz ele, que coordena o Grupo de Óptica do IFSC-USP, sede do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.
Inicialmente, o físico utilizou laser para tratamento de tumores na cavidade bucal e em órgãos internos como esôfago e bexiga. A droga fotossensibilizadora, com capacidade de absorver certa faixa de luz e promover a morte das células doentes, era administrada de forma sistêmica, via intravenosa. “Apesar dos resultados promissores no tratamento do câncer de bexiga e esôfago, por volta de 2005 começamos a focar em câncer de pele, utilizando um medicamento de uso tópico.”
A mudança de foco se deu por dois motivos principais. O primeiro era o elevado número de casos de câncer de pele no Brasil, que poderiam responder de forma rápida ao tratamento. O segundo dizia respeito à própria terapêutica. Por se tratar de um tratamento tópico, os resultados eram mais facilmente visíveis, o que ajudava no desenvolvimento da técnica.
O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que o Brasil deve registrar 704 mil novos casos de câncer por ano até 2025. O mais frequente é o de pele não melanoma, responsável por 31% das ocorrências dentre todos os tipos de tumores, com cerca de 220 mil novos casos anuais. O carcinoma basocelular, para o qual a terapia fotodinâmica foi recomendada, é o subtipo mais comum do câncer de pele não melanoma, correspondendo a 80% dessa parcela.
Segundo o dermatologista Mário Yoshiaki Enokihara, coordenador do curso de Especialização em Dermatologia Cirúrgica Avançada da Unifesp, o carcinoma basocelular apresenta prognóstico favorável desde que tratado precocemente, quando a lesão ainda é inicial. Foi exatamente para o tratamento de tumores superficiais, com até 2 milímetros (mm) de infiltração, que os pesquisadores paulistas criaram o protocolo, utilizando diodos emissores de luz (LED). O laser, que penetra mais profundamente na pele, era usado nos estudos que visavam ao tratamento de órgãos internos.
“Nem todos os pacientes tratados nos serviços públicos são diagnosticados precocemente, quando o tumor ainda é superficial”, diz Enokihara. A terapia fotodinâmica também é indicada em casos específicos de contraindicação do tratamento invasivo, seja por impedimentos clínicos do paciente, como imunossupressão ou baixa capacidade de cicatrização de feridas, ou se houver alto risco de desfiguração da região operada, com comprometimento funcional. O padrão ouro do tratamento é a remoção cirúrgica do tumor, com taxa de cura de até 98%.
Coube à empresa MM Optics, uma spin-off do IFSC, fundada em 1998 e apoiada pela FAPESP, a criação do novo aparelho de TFD, com luz LED, sob orientação do Grupo de Óptica do instituto. O equipamento, 100% nacional, teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial – Embrapii (ver Pesquisa FAPESP nº 253). Recebeu aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2014.
Segundo o engenheiro eletricista Anderson Luís Zanchin, diretor industrial e de engenharia da MM Optics, uma diferença desse equipamento em relação a outros usados para TFD em consultórios particulares é um sistema dual que une fotodetecção, a emissão de luz para a visualização do tumor, e uma ponteira de tratamento – os aparelhos concorrentes têm apenas a ponteira de tratamento. O uso da TFD para câncer de pele não melanoma foi aprovado no Brasil em 2006.
Estudo multicêntrico
A empresa já produziu cerca de 200 aparelhos, que estão sendo utilizados por centros de pesquisa e serviços de medicina privada. “O Brasil será o primeiro país a colocar a terapia fotodinâmica no sistema de saúde pública”, afirma a pesquisadora Cristina Kurachi, que também se dedica ao estudo de TFD no IFSC desde o fim da década de 1990.
Na recomendação de incorporação da tecnologia ao SUS, a Conitec considerou a existência de profissionais capacitados e uma estrutura instalada em dezenas de serviços públicos de saúde. Segundo Kurachi, essa estrutura é resultado do Programa TFD Brasil, coordenado pelo IFSC com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O programa, iniciado em 2012, foi criado com a finalidade de implementar a terapia fotodinâmica em centros nacionais. Nos cinco anos que durou o projeto, foram treinados na nova tecnologia profissionais de 72 centros de tratamento espalhados pelo país. “Foi o maior ensaio clínico multicêntrico de câncer de pele do mundo”, afirma Bagnato. Um artigo com os resultados foi publicado na revista Cancer Control, em 2019.
Uma das instituições participantes foi o Inca, que em 2015 criou um ambulatório específico para tratar câncer de pele com terapia fotodinâmica. “É um procedimento que poupa da cirurgia os pacientes com lesões superficiais”, destaca o chefe da Seção de Dermatologia do instituto, Dolival Lobão. Ele explica que, além de dispensar anestesia e internação, a TFD não deixa cicatrizes na região tratada. O serviço atende em média três pacientes por semana.
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Fotossensibilizador de baixo custo
A parceria do Inca com a USP continua até hoje. O IFSC fornece, gratuitamente, o equipamento e o creme utilizado na terapia – manipulado na própria universidade –, e o Inca repassa os resultados clínicos aos pesquisadores. Os consultórios particulares recorrem a um produto importado, que custa em torno de R$ 1.000 a bisnaga de 2 gramas, o suficiente para quatro aplicações, em média. A manipulação do fármaco na USP foi custeada pelo BNDES e pela Embrapii. Por isso, pode ser oferecido gratuitamente ao Inca. Uma solução mais econômica pode surgir em breve. A empresa Emipharma, ligada a MM Optics, está sendo estabelecida para a produção nacional do fármaco.
Obter a recomendação da Conitec foi um processo longo. O primeiro pedido de incorporação da terapia foi feito em novembro de 2018. Após mais de um ano de análise, a resposta foi negativa e ele foi recusado. A comissão que analisou o pedido considerou frágeis as evidências científicas apresentadas, principalmente do ponto de vista de eficácia em comparação à cirurgia. “Continuamos aperfeiçoando a técnica e elevamos o índice de eliminação tumoral para 95%”, recorda-se Bagnato. “Trabalhamos com margens de segurança de modo a assegurar a remoção das pequenas células nas bordas que fogem do corpo principal do tumor.”
Em agosto de 2022, nova submissão foi apresentada e o parecer preliminar, emitido em março de 2023, antes da etapa de consulta pública, ainda foi desfavorável. Restavam dúvidas sobre a técnica, sobretudo em questões de custo-efetividade. “Depois da consulta pública, o Conitec promoveu outra reunião e pudemos tirar todas as dúvidas”, relata Kurachi. O parecer final, favorável, veio em julho.
O dermatologista Enokihara, da Unifesp, ainda vê com reservas a implementação da TFD no tratamento de câncer. Sua principal preocupação é a correta indicação da terapia fotodinâmica e o treinamento para os profissionais que a aplicarão. “Mesmo dentre os casos de carcinoma basocelular há vários tipos, e alguns mais agressivos. É preciso ter muita certeza do diagnóstico”, alerta.
Opinião semelhante tem a dermatologista Maria Claudia Almeida Issa, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela estuda a terapia fotodinâmica há mais de 15 anos e viu casos de uso indevido da técnica. A médica não recomenda, por exemplo, sua aplicação para o carcinoma basocelular instalado em áreas da pele com alto risco de recorrência. “Na região do nariz e próximo aos olhos, mesmo o carcinoma in situ [não invasivo] é agressivo. Nesses casos, não se indica a TFD pela alta incidência de recidiva”, diz. A especialista enfatiza que a TFD tem “excelente taxa de cura para lesões de ceratoses actínicas, pré-malignas, na face”.
Autora de um artigo de revisão sobre o uso da TFD em tratamentos de pele, publicado na revista Anais Brasileiros de Dermatologia em 2010, e integrante do estudo multicêntrico promovido pelo grupo de São Carlos, Issa vê como positiva a incorporação do tratamento na rede pública. “Estou contente que a terapia tenha sido aprovada para implantação no SUS. Agora a sua aplicação será padronizada.”
Via: Revista Fapesp